4.26.2012

Descerrar fileiras

Em tempo de crise, o conceito do encerramento das fileiras é muito gráfico e traduz o pensamento limitado de quem o produz. Em alturas de fragilidade social concretiza-se o sonho de tontos que por detrás do sobrolho carregado regozijam com a desgraça alheia, adubo imoral dos tiranos. Pois bem, numa altura em que os problemas inundam a sociedade são-nos apresentadas, como em todas as outras situações de fragilidade, duas soluções: a vigente que implica o Estado ir ao nosso bolso e tomar conta de nós e a outra que implica o Estado tomar conta de nós e ir-nos ao bolso. Deve ser pecado falar de Hayek, numa altura como esta. Mas as crises não deviam ser desculpas sujas para cerrar as fileiras contra a autodeterminação. João Pereira Coutinho, com a clareza de sempre, lembra que não é tempo de cerrar fileiras, mas sim de estudar ainda mais, de fundar melhor as ideias e fugir dos que insistem em escavar trincheiras. Aqui

4.25.2012

Portas da mente

Miguel Portas foi, durante o tempo em que vivi sob a ideia da utopia esquerdista, um herói. Ouvia-o como a um sábio e comecei a aprender com ele a nefasta rigidez do PC, partido de que saíra por imposição moral e força de liberdade individual. As causas que apresentava eram justas e despertavam-me a vontade de conhecer mais sobre elas, de ler, de ouvir e conhecer. Para um rapaz de 18 anos, Miguel era a certeza de que poderíamos acreditar na utopia (sem ser chatos como o Louçã ou o PC)e adultos, vivendo sem cair no emburguesamento das ideias. A alegria quando o vi entrar na Assembleia da República foi igual à certeza de que o país iria entrar nos eixos e preocupar-se com as coisas realmente importantes. Entretanto seguia um documentário, por ele conduzido, sobre as incursões portuguesas no Oriente, na altura dos Descobrimentos. Um belíssimo programa que por mostrar também o menos positivo dessa demanda não teve a projecção de outros, às vezes mais fantasiosos. Mais uma vez mostrava como não há uma versão das coisas, como não devemos sujeitar-nos a uma ideia, a um caminho imposto. A verdade é que a lição de desprendimento e liberdade individual foi também uma contribuição para me ir afastando de uma ideia que me foi parecendo cada vez mais impraticável e até indesejável. Vi a última entrevista de Miguel na Sic. Continuei sempre a ouvi-lo com respeito e sem a preocupação de interiormente contrapor a argumentação. Desapareceu um homem que contribuía activamente para a minha liberdade individual e humildade política. Faltam muitos gajos como ele, à esquerda.

4.19.2012

Psicopata assassino

Quando terminou a série 5 do Dexter, não consegui tirar o travo a azedo do cérebro. Não que a quantidade de cadáveres deixada por Dexter Morgan me atormentasse o sistema, mas porque a podridão anunciava o fim. Não havia nada a fazer por este conceito de psicopata mais ou menos justiceiro. As pistas à CSI tinham tomado conta de alguns episódios (uns pneus que só se vendem em duas lojas, ou a fibra têxtil de que um revendedor tem o exclusivo confirmavam-nos que Miami deve ser uma cidadezita do tamanho da vila de S. Sebastião) e as piadas, essenciais para a captação da ironia (ou talvez não) do conceito de psicopata justiceiro, tornaram-se uma entrada perigosa para a quase ridicularização de uma série que apesar dos providenciais momentos cómicos, se queria séria - quem não se lembra de dada vítima a fugir por entre contentores envolto no plástico de cozinha? Teve piada... Demasiada.

Mas havia mais. A mente humana tem sempre recantos por aliciar e os gajos do Dexter acertaram-me bem na sexta série. O misticismo religioso e a discussão da fé, do ponto de vista de quem não tem outra visão da vida se não o aqui e agora brutalmente (literal) pragmático. E então voltou o interesse. Parece até que alguém deu conta do caminho sinuoso das pistas à CSI e fez-se questão de, em algumas das investigações, aventar números mais verosímeis para uma cidade como Miami: milhares de pessoas a investigar, trabalho burocrático, explicar probabilidades para exclusão de suspeitos... Sentimo-nos bem quando percebemos o cuidado de quem nos entretém, com os pormenores. Enquanto no cinema a preocupação com os pormenores se tem resumido a pixéis, na televisão preocupa o enredo e ainda bem. Até uma terapeuta excepcionalmente credível ajuda à festa. Claro que seria bom demais que esta credibilidade se mantivesse sem mácula. Mas esta série não escapa sem momentos forçados. Aliás o enredo é atingido com alguma violência num ponto em que a psicóloga de serviço é crucial... Mas vá, quem vê televisão não quer vida real não é?

4.15.2012

Musiqueta

Os Amálios, banda de punk-fado que trago no coração, explicam numa cantiga a impossibilidade de gostar de todos os estilo de música. Com algum orgulho abuso falando da minha influência neste tema quando um dia vilipendiei no mítico Século uma pessoa que me disse que ao nível de música gostava de tudo um pouco.

Como não consigo estar quieto, faço o próprio contra ataque e digo: também não será bom gostarmos de um só estilo porque o pessoal à volta gosta. O indivíduo antes do grupo deveria ser o lema.

4.02.2012

Um poço em todos os lugares

Há uns tempos, Charlotte explicou, numa acesa discussão bloguística, porque é que um livro não muda a vida de ninguém. Aproveitando a concordância, direi que um álbum musical ou um concerto também não mudam vida nenhuma. Talvez suportem algumas descobertas, acompanhem estados de espírito e enriqueçam a integração nas coisas humanas. Porventura ajudarão a sublinhar conclusões ou darão algum conforto emocional. Não é pouco, mas não é mudar a vida.

Ontem, o concerto de Lanegan foi sensacional. Em forma, com uma voz tão cavernosa e espinhosamente límpida que nos levou às profundezas do poço que teima em chamar alguns de nós aonde quer que vamos. Um tormenta agradável, inevitável, que nos arrebanha para o meio da desgraça sem enganos. Ao mesmo tempo perceber que tudo está bem. Em amena conversa com o guitarrista, a quem pagámos uma cerveja fresca, confirmei os mais de quatro anos que Lanegan se mantém fora de vícios.

Tudo acaba melhor quando aperto a mão ao Mark Lanegan, lhe agradeço o concerto, e não se lhe vislumbra enfado.