O dom que a faca falante dá às pessoas retratadas n'a vigésima terceira facada, é-o de forma completamente aleatória. Se mais absurdo puder ser, explico que quando a faca aparece não sabe a quem vai dar a mensagem da semi-imortalidade. Não se sabe a quem cabe a decisão da atribuição de tal maldição, benção, dom. Alguns não hesitam em endossar a responsabilidade a magia negra e a lacaios de Lavey, enquanto outros afirmam tratar-se claramente de uma graça luminosa e, por isso, divina. A discussão é no entanto muito reduzida e assumindo redundância, reduz-se a duas pessoas, tendo eu referido a palavra "alguns" para justificar a introdução aqui das duas correntes acerca da génese e da existência de tal fenómeno no mundo. Porque, perguntar-se-ão com justificável afã, "será que interessa saber as diferentes correntes de explicação da atribuição de tal fenómeno tão extraordinário, que importa antes de tudo apreciar?" Ainda por cima há duas pessoas apenas a discutir as duas posições antagónicas. " Não será discutir a responsabilidade da vigésima terceira facada, o mesmo que discutir a origem do universo, mas em que os positivistas não pretendem entrar na discussão? Sei que os que defendem que se trata de magia negra e de satanismo não são satânicos. Sei porque o conheço, porque é uma pessoa e não várias, como falaciosamente tento dar a entender por toda a história. Este texto não é científico, tão só narrativo. Então se calhar, a discussão não é igual à da criação do Universo porque nesse caso nunca ouvi que os satânicos tomassem para o seu ídolo a criação do mundo, sendo estes sabedores de que o seu mestre não é mais que um renegado do verdadeiro Senhor que será até para estes, o criador do mundo.
Esta discussão então entre o grupo dos optimistas e dos pessimistas, será quando muito equiparada às querelas sobre as células estaminais e sobre o seu cariz benfazejo ou malfazejo, e em que os partidários do primeiro assumem que as pessoas que o fazem são boas e os do segundo, raciocinando de forma análoga, pessoas más.
Pois bem, na minha opinião e porque estou a relatar isto, penso que é altura de dar o meu parecer e de me identificar com uma das correntes. Mas em nenhuma delas me revejo porque tenho intestina sensação de que a vigésima terceira facada e o seu extraordinário aparecimento é puramente caótico e anárquico. A faca aparece porque alguém a fez, depois alguém a foi investindo inadvertida e inconscientemente de poderes. Estes nada têm de mágico, mais não são que coisas intrínsecas ao próprio fenómeno e que nada ficam a dever à magia. E aqui demarco-me da corrente pessimista.
Poderá até pôr-se a hipótese de estes acontecimentos serem puramente oníricos, irreais e de estas ideias seram apenas um argumento de alguém que habita a realidade. Ou, repare-se como isto é tremendamente possível, as pessoas retratadas nestas narrativas morrem à primeira oportunidade conforme as suas vidas (como qualquer humano) mas por uma razão igualmente fantástica, tudo o resto à sua volta se comporta como se estivessem vivas, agindo, falando, dormindo,comendo com seres inanimandos mas a quem é atribuída colectivamente a faculdade da vida. Imagine-se o caso de G, do relato VG anterior: assustado pela mensagem da faca falante, G. atira-se do vigésimo terceiro andar. Imagine-se que ele estava morto quando a ambulância chegou e que toda a história não passa de uma complexa e quase hilariante alucinação auto-induzida colectiva! Eu acredito que não é isto que se passa, mas vale a pena verificar isto. Ficarei atento a próximos relatos.
Esta discussão acerca da origem do dom da faca falante encontra-se agora mais aceso que nunca, depois de ter chegado o testemunho da história de Y.
Y. levantou-se noutro dia de ressabiamento e ódio, duas qualidades severamente valorizadas pela comunidade, inclusivamente alguns membros da família. Y. não tinha grandes hipóteses de escapar à influência de tão ignóbeis sentimentos que eram, de forma primária, colectiva e desde o berço, incutidos como virtudes e organizadores de uma vida honrosa. As suas suspeitas quanto à falta de sentido da sua vida, por muitas explicações místicas e religiosas que tivesse ouvido, surgiam naturalmente a cada dia vazio que passava. Só o ódio à vista do inimigo lhe possibilitava sentir-se vivo e com um propósito na vida. Destruir porque sim e porque era justo, determinava-lhe os passos, os amigos, relacionamentos, aprendizagens.
No meio de mais um momento de ociosidade e cisma nas atrocidades que o inimigo havia infligido a alguns conhecidos, imbuído do sentimento de vingança, questionamento de objectivos de vida, entorpecido por mais uma tarde inteira a consumir haxixe, aparece a faca com a mensagem da sua quase imortalidade. Abismado com tal notícia e certo de que seria uma benção divina correu a explicar o sucedido ao sábios religiosos da aldeia. Obviamente muitos falaram de obra do demo, mas outros houve que puseram a hipótese de se tratar de trabalho divino e não hesitaram em pôr a veracidade do sucedido imediatamente à prova, atingindo pelo caminho mais alguns dos seus pragmáticos objectivos. O entorpecimento e o ócio eram gerais na aldeia pelo que uma história tão fantástica depressa galvanizou todos.
Era meio-dia quando o cinto explosivo foi colocado à volta de Y. "Agora vai até à cidade e faz o que tens a fazer. Se voltares depois da explosão serás glorificado como mártir excepcional. Se morreres, o inferno será o teu destino e sobre a tua família abater-se-á a desgraça."
Vinte e três explosões depois, Y. foi apanhado pelas autoridades inimigas que há muito se intrigavam sobre missões suicidas em que o autor não aparecia entre as vítimas.
Compreende-se agora a discussão sobre a moralidade ou os objectivos do fenómeno faca, que até aqui teria sido praticamente inócuo. Mas como simpatizar com algo que propiciou 23 missões mortíferas? Avizinhar-se-á algo de obscuro para estes acontecimentos até agora pouco mais que simpáticos, ou pelo contrário, terá sido este um engano? Se for um engano, toda a teoria da caótica organização da facada vai por água abaixo: como explicar enganos no caos?!
4.27.2008
Vigésima terceira facada IX
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