1.20.2005

Andares

Depois de ter passado a linha-férrea o Sr. Mil continuou o caminho pelo cais, sabendo que a qualquer altura poderia ser interpelado pelo facto de não levar vestido o sobretudo. Além disso ele temia que reconhecessem a sua maneira de caminhar, o que lhe traria graves problemas: pela sua forma de caminhar já havia sido apanhado em situações ilegais. Furtivamente entrou num armazém vazio e sentou-se no centro. Precisamente. Havia vinte e três noites que não dormia e no entanto continuara activo, sem sono. Hoje apetecia-lhe dormir e o chão poeirento do barracão servia perfeitamente, não obstante as alegres ratazanas e algumas baratas que procuravam em vão algo para se saciarem.
Sonhava com tempestades e cavalos alados resgatando pessoas, correntes intermináveis de água misturada com vinho que seres impressionantes bebiam emitindo sons roufenhos, moças que se maravilhavam com os cavalos, homens que se maravilhavam com as moças e com os cavalos, quando foi interrompido. O segurança apontava-lhe a lanterna à cara:
- Que se passa?
- Não sabe que não pode estar aqui deitado?
- Porquê, incomodo as ratazanas?
- Incomoda as pessoas da cidade.
-Por estar aqui?! – Mil pensou nesse momento se estaria ainda a sonhar, e se este segurança não seria um desses seres impressionantes.
- Muitas pessoas o viram dirigir-se para aqui, e o senhor sabe o que significa quando certas pessoas reconhecem o seu caminhar…
-Sei muito bem o que quer dizer, e eu estou consciente das implicações que a forma como eu ando acarreta, mas isso não me obriga a impedir-me de andar em certo sítios. – Mil estivera em situações semelhantes dezenas de vezes, tendo já sido preso algumas delas. O segurança não parecia disposto a medidas extremas embora tenha continuado:
- Venha comigo.
- Não quero.
- As pessoas querem confrontá-lo.
- Não quero.
- Eles apenas querem que seja igual a todos nós.
- Não preciso. Estou melhor assim. – O segurança sorriu com complacência o que o irritou levemente.
- Pelo menos vá para um dos cantos do armazém, as pessoas não vão ficar tão chateadas se souberem que eu o expulsei do sítio onde se espojou, caso contrário arranjo sarilhos.
Sem uma palavra, Mil dirigiu-se para o canto direito (de quem sai) ao lado da porta e sentou-se mirando o segurança. Este foi-se embora satisfeito com a sensação de dever cumprido e com a estúpida sensação de poder. Afinal, tinha conseguido agradar às pessoas!
Mil decidiu sair quando o sol começava a despontar, enfiando os seus raios por entre as abundantes frestas do armazém. Comprou um jornal onde procurou anúncios referentes a emprego para topógrafos, e quartos para alugar. O dinheiro que juntara ao longo de alguns anos de trabalho começava agora a escassear e precisava de um sítio barato para dormir. Quando o despejaram da anterior casa por se recusar a viver de determinada maneira, vagueou pela cidade onde encontrou o que queria, sempre ao acaso sempre sem ter o azar de o voltarem a chatear por causa do caminho e do seu caminhar. Perturbava-o o facto se o segurança o ter importunado devido a esse problema. Depois de tantos dias sem nada lhe dizerem pensara já que tudo se tinha tratado de uma forma de o tirarem da sua própria casa, mas pelos vistos fora uma confortável ilusão que o levara a respirar fundo. A casa já não era sua, mas o problema continuava a incomodar. O problema que tanta confusão fazia a grande parte da sociedade. Lembrava-se bem do dia em que a autoridade o levou para o antro com o fim de o convencer a libertar-se do “fardo”, que tanto pesava (acreditavam eles) e que lhe mostraram dezenas de cadeiras de rodas para que ele escolhesse com toda a liberdade e consciência que o Estado lhe permitia. “O Estado é bom e inquestionável” ecoava-lhe na cabeça como o silvo de uma faca a afiar. A liberdade apregoada pelo Estado permitiu-lhe renegar a vontade de renunciar ao seu caminhar, mas a forma como lhe controlam a vida desde então tem sido dificilmente suportável, mesmo estando consciente da sua vontade. As 23 noites sem dormir foram sem dúvida a última provação. Mil esperava ceder enfim aos outros, se estivesse frágil e com o discernimento muito afectado, o que não aconteceu. A sua individualidade sobrepunha-se á vontade de libertação do Estado. Então continuou caminhando da única forma que sabia e queria, autónomo de rodas e máquinas, com as suas pernas.

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