Enquanto as sementes saltavam na peneira, o sol se punha e as gralha anunciavam o fim do dia, J. organizava o seu dia seguinte com a destreza de quem já o faz há seis anos,com a alegria de um abelharuco atrás da primeira abelha. Ou a angústia do abelharuco que tenta apanhar a sua primeira abelha? Terminada a separação do trigo do joio, J. dirige-se a casa come e dorme. Espera ainda desde o dia em que decidiu mudar-se para esta aldeia deserta pela mulher que o destino lhe vai dar, como no sonho que teve na noite em que se deitou às oito da noite. Agora deita-se sempre às oito da noite mas nunca mais teve o mesmo sonho que lhe deu a razão para abandonar a existência feliz que tinha, considerando os relacionamentos que tibha e mantinha. Nunca fora um rebelde, e a explicação para esta atitude que tomara não tinha explicação no mundo real que J. sempre aceitara e por cujas regras sempre se tinha regido com agrado.
Meteu-se no carro, levantou todo o dinheiro e parou na primeira aldeia que instintivamente lhe indicou ser a certa. Entretanto participou nos dois últimos enterros da aldeia, um casal de velhotes simplesmente simpáticos e com quem manteve uma ligação agradável durante um e dois anos. A solidão, ao contrário do que J. pensou, não o arquibancou de forma tão avassaladora que não conseguisse continuar os seu dias da forma rotineira como até aí. Afinal, aqueles que lhe eram mais chegados estavam bem, e o sonho tinha-lhe apresentado uma aldeia deserta onde o trabalho era de sol a sol.
Foi com pouca surpresa que no dia em que se deitou `as nove da noite lhe apareceu a faca dando-lhe a notíca já repetida aqui até à náusea. "Vinte e três facadas? Que raio, mas porquê vinte e três? Se for um ferro pontiagudo, também conta? E uma gadanha? Epá! Isto porque me deitei às nove! Se amanhã me deitar às dez serei traslado para outra dimensão, e directamente como protagonista do Twilight Zone?!Ah! AH! Ah!" No dia em que levou um valente coice de um cavalo que insistentemente importunava há algumas horas mandando-lhe pequenas pedras à cabeça, percebeu que apesar do tudo ser muito interessante, inaudito e cientificamente assinalável, o tal dom não lhe dava insensibilidade à dor.
Passaram 177 anos e J. continua a rotina que lhe permitiu ter conhecimentos que o ajudam a viver cada dia satisfeito e contente. Os últimos enxertos que fizera ocupavam-lhe a maior parte dos dias com paciência pelo tempo permitida, por ele próprio aprendida, e sempre com ansiedade se levantava para observar o seu último projecto.
A vida é um lugar comum, mas J. não foi vencido pelo tédio e não utilizou o tempo para conceber um mecanismo que lhe desse vinte e três facadas de uma vez só. " E porque é que nunca mais me apareceu nada no sonho? Porque é que o raio do Freud não me ajuda nisto e não editou nada em 1900 que me desse agora a resposta a esta dúvida que trago comigo desde que a faca me apareceu? A vigésima terceira facada terá alguma coisa que ver com o sonho primordial? E se o primeiro não for mais que um engôdo para esta pesada e inevitável eternidade?"
J. fez estas perguntas e esperou, mais uma vez.
Haviam passado 123 dias quando chegou o primeiro grupo de pessoas atarantadas, andrajosas e sequiosas onde de entre, J. não vislumbrou mas viu o rosto que o sonho lhe apresentara.Era a mulher que se deitava às oito.
9.23.2007
Vigésima Terceira facada VI
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